Pouco se falava no Brasil sobre Cateter Nasal de Alto Fluxo (CNAF) nos tempos pré pandemia da COVID-19. Vale dizer que havia razoável sentido neste cenário, uma vez que os estudos sobre o dispositivo no manejo da Insuficiência Respiratória Aguda (IRrespA) eram pouco frequentes, aqueles realizados eram pouco robustos, sem falar da quase indisponibilidade do método nas unidades de emergência brasileiras.
O Cateter Nasal de Alto Fluxo, também chamado de Cânula Nasal de Alto Fluxo (CNAF), é um dispositivo de suporte de oxigênio umidificado e aquecido a fluxos tão altos quanto 60L/min via um cateter nasal largo. É usado em pacientes críticos em diversos cenários, como IRespA hipoxêmica e hipercápnica, pós extubação, pré oxigenação para intubação orotraqueal (IOT), ou mesmo no intuito de se evitar IOT em pacientes imunossuprimidos.
Teoricamente, o CNAF traz vantagens fisiológicas ao suporte de O2 convencional, como redução do trabalho respiratório devido aos fluxos do dispositivo serem compatíveis com o fluxo inspiratório, melhor sincronia toracoabdominal e esforço respiratório mais eficaz associados à redução do espaço morto anatômico, maior facilidade no clareamento de secreções, menor risco de atelectasias e melhor oxigenação.
O dispositivo inclui uma fonte de gás (usualmente um gerador de fluxo com um blender de ar comprimido e oxigênio), capaz de gerar fluxos até 60L/min com frações inspiradas de O2 que variam de 21 – 100%, um umidificador aquecido, um circuito inspiratório único e um prong nasal largo.
A COVID-19 parecia a tempestade perfeita para mudar a realidade cercada de dúvidas a respeito da eficácia do CNAF por diversos motivos:
Enfim, a lista é enorme, ainda sem abordar a potencial redução de custos assistenciais, menor sobrecarga da equipe multiprofissional, bem como potencial menor necessidade de profissionais especializados com a utilização do CNAF em vez da VM invasiva.
Com tantos atributos favoráveis, era de se esperar um posicionamento mais contundente das grandes sociedades internacionais que embasasse o uso do CNAF. Ironicamente, não nos parece a realidade. Os guidelines do Surviving Sepsis Campaign para manejo da COVID-19(3) orientam considerar o CNAF nos pacientes com insuficiência respiratória hipoxêmica a despeito da oxigenioterapia convencional, como recomendação fraca.
A Organização Mundial de Saúde (OMS), por sua vez, também traz um ar evasivo em seu guideline: considerar CNAF ou ventilação não invasiva (VNI) em pacientes com Síndrome do Desconforto Respiratório Agudo (SDRA) leve. Já o National Institutes of Health (NIH) – última atualização em 07/06/22 – parece um pouco mais enfático (nada eloquente, porém), quando atribui grau B (moderada recomendação) e nível IIA (ensaios clínicos com limitações) à orientação do CNAF como terapia inicial naqueles pacientes que falharam no suporte convencional, antes de progredir com VNI ou IOT.
É importante ressaltar que não se trata de uma crítica direta às sociedades internacionais. Os guidelines nada mais são que uma expressão sumária da evidência disponível sobre um tema qualquer.
O trial RECOVERY-RS(4), publicado no JAMA em Jan/2022, incluiu mais de 1200 adultos internados com IRespA hipoxêmica por COVID-19 e mostrou que a VNI (na forma de CPAP – continuous positive airway pressure), mas não o CNAF, reduziu a necessidade de IOT em 30 dias em comparação com a oxigenioterapia convencional.
Outro ensaio clínico(5), conduzido na Colômbia, publicado também no JAMA semanas antes, contudo, aponta para uma direção diferente. Os pesquisadores randomizaram 220 adultos com IRespA hipoxêmica para CNAF vs. suporte convencional e mostraram que o CNAF reduziu a necessidade de IOT e o tempo para recuperação no seguimento de 28 dias. É claro que os estudos divergem metodologicamente, como por exemplo nas configurações de fluxo inicial do CNAF e no estabelecimento de critérios predefinidos específicos para IOT, o que demanda uma análise mais cuidadosa do que rotular um trabalho como positivo e outro como negativo.
Em suma, após mais de 2 anos de pandemia, com um cenário supostamente favorável à utilização do CNAF, não conseguimos estabelecer ao menos se o dispositivo se associa de fato à redução da necessidade de IOT. Veja que não chegamos ao mérito de discutir mortalidade (é pouco provável um dispositivo de suporte de oxigênio reduzir mortalidade sem impactar nas taxas de VM invasiva). É fato, contudo, que o acesso limitado ao CNAF no Brasil parece ter sido, ao menos em parte, resolvido. Muitos dispositivos foram adquiridos e diversas Unidades de Emergência, antes desprovidas, agora dele dispõem. Paralelamente, os casos graves de COVID-19 seguem em franca redução. Precisamos discutir, portanto, qual o lugar do CNAF em outros cenários clínicos e se podemos ser mais contundentes na sua indicação. Aquela justificativa de indisponibilidade para pouco dele falarmos não mais cabe aqui. Será que as evidências melhoraram?
O efeito do Cateter Nasal de Alto Fluxo no risco de IOT e na mortalidade, quando comparado com a VNI, em pacientes com IRespA hipoxêmica permanece como objeto dúvida. Não é aqui que nos encheremos de convicções. As revisões sistemáticas não trazem metanálises separadas para pacientes que receberam CNAF como manejo inicial ou no cuidado pós extubação, o que confunde a análise.
A maior revisão sistemática(6) foi publicada pela Cochrane em março de 2021, que incluiu 31 ensaios clínicos e mais de 5.000 pacientes com ou em risco de IRespA na UTI. Vale ressaltar que a intervenção foi considerada tanto no cenário pós extubação como no suporte não precedido de VM. Não houve associação do CNAF com menor falência de tratamento (definida como necessidade de escalonamento de suporte respiratório em até 28 dias), de modo que o intervalo de confiança traz uma enorme interrogação sobre a possibilidade de benefício ou dano (IC 0,78 – 1,22). Os resultados também são reprodutíveis para a mortalidade hospitalar (sem diferença estatística; IC 0,64 – 1,31).
Até o presente momento, podemos dizer que não há evidências suficientes para definir o real impacto do CNAF em desfechos como redução de IOT, necessidade de escalonamento de suporte respiratório ou mortalidade. Vale lembrar que um único ensaio clínico (estudo FLORALI)(7), publicado em 2015, associou CNAF com redução de mortalidade, sem contudo alterar as taxas de intubação, o que traz uma enorme interrogação a este resultado.
Aqui as evidências parecem um pouco mais animadoras, conforme aponta uma revisão sistemática publicada em 2021(8). O CNAF reduz reintubação e necessidade de suporte ventilatório pós extubação comparado à oxigenioterapia convencional. Em relação à VNI, é tão eficaz quanto em reduzir reintubação considerando a população geral de pacientes críticos. Quando analisamos isoladamente as extubações de alto risco (como pacientes com insuficiência cardíaca e DPOC), a associação de CNAF com VNI é a melhor abordagem(9).
CNAF como método de pré oxigenação para IOT
Este é um lugar caro aos emergencistas. Grande parte das evidências provém, entretanto, de trabalhos realizados na terapia intensiva. Os estudos são pequenos e diferem em termos dos fluxos utilizados, o que traz dificuldade na interpretação dos dados. Uma pré oxigenação segura é fundamental para trazer segurança à IOT. Qual o papel do CNAF neste cenário?
A pré oxigenação com CNAF em pacientes com hipoxemia não grave não parece reduzir o risco de dessaturação durante a IOT em comparação com dispositivo bolsa-valva-máscara, porém reduz o risco de eventos adversos graves (morte, SatO2 < 80%, parada cardiorrespiratória ou hipotensão), conforme ensaio clínico publicado em 2019 na Intensive Care Medicine(10).
Os desfechos não são favoráveis ao CNAF, contudo, quando se considera pacientes com hipoxemia moderada a grave (P/F < 200), de acordo com análise de subgrupo realizada pelo estudo FLORALI-2(11). Neste estrato, o CNAF se associou a maior incidência de hipoxemia grave durante a IOT e menor SatO2 ao final da pré oxigenação.
Muita esperança foi depositada na performance do CNAF no manejo da hipoxemia durante o combate à pandemia da COVID-19. Era comum a impressão (ou até certeza) entre emergencistas e intensivistas de que o dispositivo modificava os desfechos, reduzindo intubações ou eventualmente até a mortalidade. Infelizmente, não é o que a literatura demostrou em publicações subsequentes. A pandemia trouxe uma familiaridade inevitável das equipes assistenciais com o dispositivo, haja vista a difusão do suporte pelas unidades de emergência e UTIs brasileiras.
É necessário enxergar com certa crítica a utilização desenfreada do CNAF. A literatura não trouxe resultados robustos em favor desta terapia em detrimento do suporte previamente difundido. Não podemos de forma alguma protelar a IOT, quando bem indicada, sob risco de causarmos efeitos deletérios na evolução dos nossos pacientes. Precisamos reconhecer que pairam mais dúvidas que convicções sobre o real efeito do dispositivo nos cenários clínicos mais comuns que envolvem a sua utilização.
Referências